Concrete poem Time

QUEBROU!

Uma irrefreável onda de vendas derruba o preço das ações,causa pânico na Bolsa de Nova York e leva milionários à bancarrota. Para onde vai a economia do país mais rico do mundo?

crash bolsa 1929

Um alvoroço incomum nos arredores da Bolsa de Valores de Nova York chamou a atenção do comissário de polícia da cidade, Grover Whalen, na última quinta-feira, dia 24. Por volta das 11 horas, um rugido cavernoso começou a escapar do edifício. Alguns minutos depois, já não era possível identificar se o bramido vinha de dentro ou de fora da Bolsa; uma multidão estrepitosa tomara as cercanias de Wall Street e Broad Street, como formigas rodeando um torrão de açúcar esquecido na pia da cozinha. Alarmado, o comissário logo enviou um destacamento especial para a região. A turba, contudo, não representava uma ameaça à ordem pública, como o oficial perceberia mais tarde. Com olhares horrorizados e incrédulos, os nova-iorquinos, espremidos uns aos outros, estavam inertes. Eles apenas esperavam, não se sabe ao certo quem ou o quê. Era o pânico.

Dentro do prédio, a consternação era semelhante, e estava ainda mais evidente na agitada face de corretores e operadores, protagonistas e testemunhas do acontecimento que pode mudar os rumos da economia mundial. Símbolo maior da pujança econômica dos Estados Unidos, o mercado de ações, que se tornou verdadeira mania nacional nesta década gloriosa para os americanos, via seu baluarte, a rica e poderosa Bolsa de Nova York, despedaçar-se em poucos minutos naquela que já entrou para os anais como a "quinta-feira negra". Uma onda súbita e sem precedentes de vendas tomou de assalto o pregão nova-iorquino. Ações outrora valorizadas simplesmente não encontravam novos compradores, nem mesmo por verdadeiras ninharias. Os preços dos papéis, fossem eles da United States Steel ou da American Telephone and Telegraph, caíam vertiginosamente, arrastando com eles as economias, esperanças e sonhos de milhares de americanos levados à bancarrota instantânea.

Desde então, Wall Street presenciou outras duas jornadas calamitosas – em 28 e 29 de outubro, "segunda-feira negra" e "terça-feira negra", este último o dia mais nefasto de toda a história do mercado mundial em volume de vendas e queda de preços –, que fornecem a incômoda impressão de que a incerteza e o temor vieram para ficar. As palavras otimistas dos políticos, banqueiros e magnatas, que deram um alento aos investidores após o crash do dia 24, já não surtem mais tanto efeito, ainda que insistam em anunciar uma suposta solidez da economia. Especialistas concordam que os últimos dias de outubro criarão seqüelas não só no mercado financeiro e na economia americana, mas também, por conseqüência direta, em todo o mundo. A real extensão do estrago, porém, só será dimensionada quando a poeira baixar. Ninguém, por enquanto, ousa dizer quando isso poderá acontecer.

A bolha da ilusão

Nos últimos anos, o fenomenal desempenho das ações parecia desafiar o adágio de que tudo que sobe deve descer. Há pouco mais de um mês, em 3 de setembro, o índice de ações industriais publicados pelo diário The New York Times atingia seu ápice histórico, com 452 pontos. Em 1925, o mesmo indicador registrava 159 tentos. A facilidade da compra de ações seduziu milhares de investidores, que colocavam todo o dinheiro que tinham, e especialmente o que não tinham, em pedaços de papéis certificados. Comprar ações "na margem" – pagando uma pequeníssima parcela do valor e tomando o restante emprestado do corretor ou do banco – era, até dias atrás, prática absolutamente comum e aparentemente segura. Afinal, como as ações não paravam de se valorizar, bastava vendê-las, quitar o débito com o credor e embolsar o lucro. A euforia era infinita.

Por trás dela, entretanto, escondia-se uma realidade para a qual os otimistas faziam vista grossa. Enquanto os preços das ações subiam, disparavam também os empréstimos dos corretores – no final do verão americano, o montante chegara a sete bilhões de dólares –, tornando a especulação a grande alavanca desse crescimento. Não havia, assim, segurança ou liquidez nessa enxurrada de capital que desembarcava em Nova York. Mas a aparência firme do mercado fazia dissipar qualquer preocupação com os empréstimos, e a especulação encontrava campo aberto e convidativo para se alastrar e aumentar ainda mais o valor das ações.

Algumas vozes já vinham predizendo, nos últimos meses, um estouro da bolha especulativa que alimentava os estratosféricos índices da Bolsa de Nova York. E não havia nesses oráculos nenhum tom sobrenatural – apenas o escrutínio dos fatos e as lições de quebras passadas. Contudo, alertar para essa situação significava ser tachado de destrutivista ou anti-patriota. O teórico Roger Babson, que, no início de setembro, cunhou seu agora célebre vaticínio – "mais cedo ou mais tarde, o crash virá, e poderá ser tremendo" –, foi ironizado, desacreditado e assacado pelos guardiões de Wall Street. Entretanto, uma análise minuciosa mostra que, desde então, no restante dos meses de setembro e outubro, o mercado já vinha se mostrando demasiado irregular, com ligeira curva decrescente, apesar de o entusiasmo com o bull market (o mercado altista) ainda caracterizar a Bolsa de Nova York.

A situação ganhava contornos mais alarmantes e dramáticos quando se notava que também outros indicadores econômicos nos Estados Unidos vinham apresentando declínio acentuado neste ano. Os índices da produção industrial e fabril estavam em queda desde junho, bem como a produção de aço. A construção de casas seguia o ritmo decadente dos últimos anos. Ainda assim, o banqueiro Charles E. Mitchell, presidente da diretoria do National City Bank, garantiu numa visita à Alemanha, no último dia 15, que nada seria capaz de deter o vigoroso movimento ascendente. "Os mercados em geral estão em uma condição salutar. Os valores têm uma base sólida na prosperidade geral do país", festejava. Já o professor Irving Fisher, catedrático da Universidade de Yale e respeitadíssimo economista, foi mais direto. "O preço das ações alcançou o que parece ser um nível permanentemente elevado. Espero ver, dentro de poucos meses, o mercado de valores bem mais alto do que está hoje." Como se constataria em poucos dias, não apenas o provérbio sobre subir e descer se fez valer, ainda que de forma tardia. Outro ditado também mostrou sua força: quanto maior a altura, maior a queda.

Mercado do Desespero

As primeiras horas do pregão de 24 de outubro em Wall Street passarão às páginas da história como responsáveis por abrir o alçapão em que sucumbiu a Bolsa de Nova York neste fim de década. Não se chegou, até agora, a uma explicação plausível sobre o frenesi que levou os investidores a se desfazerem, literalmente a qualquer custo, de suas antes preciosas ações naquela quinta-feira. Mas desde o início da semana as vendas já se mostravam significativas, e os índices desciam escadaria abaixo. Com o grande volume de negócios, os tickers instalados nas corretoras ao redor do país – máquinas que imprimem em fita as cotações dos papéis selecionados – não davam conta de atualizar as cotações em tempo real. Ainda na segunda-feira, o ticker só terminou de trazer o péssimo resultado daquele dia uma hora e quarenta minutos após o fechamento. Quando os investidores percebiam que poderiam estar arruinados, já era tarde demais para tomar qualquer providência. Mesmo assim, 6.091.870 títulos mudaram de mãos, no que se tornou o terceiro maior volume de negócios da história da Bolsa.

Na quarta, véspera do primeiro colapso, depois de um começo tranqüilo, vendas massivas de ações de acessórios de automóveis foram registradas; pouco depois, toda a lista entrava na dança. Apenas na última hora do pregão, 2.600.000 ações foram vendidas. A média industrial do Times despencou de 415 para 384, o que representou, na prática, a anulação de todo lucro registrado desde o fim de junho. Para piorar, a queda levou à convocação de um sem-número de investidores para pagamento do aumento da margem. Muitos não tinham nenhuma economia; todo o dinheiro estava aplicado nas ações. Não havia outra alternativa, então, senão se desfazer dos papéis para recuperar o investimento – ou o que restava dele. A essa altura, milhares de pessoas já haviam decidido abandonar o barco enquanto, imaginavam, ainda havia uma saída viável. Ela não existia.

Foi quando veio, finalmente, a quinta-feira negra. O volume de vendas no início do dia foi inacreditavelmente grande, o que fez os preços cederem com notável rapidez. Novamente, o ticker atrasava, retardando a revelação da catástrofe iminente. Dominadas pelo medo, mais e mais pessoas decidiam vender suas ações. As que não conseguiram atender às chamadas para o pagamento do aumento da margem estavam simplesmente liquidadas. Por volta das 11h30, os reflexos do pânico já haviam se alastrado: onze conhecidos especuladores haviam cometido suicídio. As bolsas de Chicago e Buffalo fecharam. O clima dentro da Bolsa de Nova York era desesperador: pouco depois do meio-dia, funcionários cerraram a galeria dos visitantes para que nenhum curioso testemunhasse as cenas de agonia que se descortinavam no salão abaixo.

Ao mesmo tempo, os banqueiros convocavam uma força-tarefa emergencial para agir de imediato. Em uma reunião no escritório do J. P. Morgan, na mesma Wall Street, diversos mandarins do dinheiro – entre eles Charles E. Mitchell, do National City Bank, Albert H. Wiggin, do Chase National Bank, e Thomas W. Lamont, do Morgan – decidiram despejar caminhões de verdinhas na Bolsa para escorar o mercado. Finda a reunião, Lamont recebeu os repórteres para uma série de declarações apaziguadoras. "Houve uma pequena aflição na Bolsa de Valores, devido a um requisito técnico do mercado. Mas as coisas são suscetíveis de melhorar", garantiu, impávido, o célebre banqueiro. Pouco tempo depois, Richard Whitney, chefão da Richard Whitney & Co., apareceu no salão da Bolsa e ofereceu 205 dólares por 10.000 ações da United States Steel, cotadas naquele momento a míseros 190. Whitney fez encomendas semelhantes de diversas outras empresas. Em um piscar de olhos, a recuperação desabrochava.

Boa parte do fervor das vendas era determinado por investidores que queriam apenas parar de perder, e estavam dispostos a se desfazer de suas ações por qualquer valor. Com isso, os papéis desprezados retornavam ao mercado e faziam os preços caírem mais ainda. O dinheiro dos banqueiros e a nova alta interromperam essa reação em cadeia, substituindo o medo de perder pela vontade de ganhar. Os preços então voltaram a subir, e o balanço do dia registrou uma recuperação notável – a média industrial do Times fechou apenas 12 pontos abaixo do dia anterior. O que fez o dia 24 de outubro tão significativo – e trágico – foi o volume total de vendas: 12.894.650 transações, recorde absoluto da história de Wall Street. Nessa dança, para inúmeros americanos já não adiantava mais que o mercado tivesse se recuperado: ao vender suas ações na baixa, estavam quebrados.

Bonança e Nova Tempestade

Sexta-feira e sábado, 25 e 26 de outubro, foram dias de relativa calmaria nos mercados. Os preços se mantiveram firmes. Corretoras seguiam trabalhando diuturnamente para colocar os negócios em dia. Representantes das 35 maiores firmas do mercado tiveram uma reunião nos escritórios da Hornblower and Weeks na sexta e emitiram um comunicado para a imprensa. "O mercado está fundamentalmente sólido e tecnicamente em melhores condições do que estivera durante meses." Uma mensagem da corretora anfitriã completou o panorama animador: "A começar com as transações de hoje, o mercado deve iniciar o assentamento das fundações para o progresso construtivo que, acreditamos, caracterizará 1930." Como essa, houve no fim de semana uma série de análises e perspectivas favoráveis ao mercado altista. Mas a chegada da segunda-feira trouxe uma ducha de água gelada a todas elas, e solidificou a percepção de que o bear market, o tão temido mercado baixista, era inevitável e irreversível.

O volume de vendas do dia 28 foi bem menor que o da quinta-feira: cerca de 9.250.000 ações. O grande problema foi o tombo: as médias industriais do Times despencaram 49 pontos. Os banqueiros reuniram-se outra vez no escritório da J. P. Morgan, desta vez no fim da tarde, num encontro que durou duas horas e que, para desespero dos corretores, não culminou em nenhuma ação de resgate ou salvamento. Ao contrário: o resumo da reunião fornecido à imprensa relatava que os abastados executivos decidiram não agir, porque não estava "dentro da finalidade dos banqueiros manter qualquer nível determinado de preços ou proteger o lucro de quem quer que fosse". Os magnatas estavam preocupados apenas em que não existissem "vácuos" – ações sem compradores –, para que assim o mercado mantivesse sua ordem. Já estava claro, a essa altura, que a situação já fugia a qualquer controle. Não havia mais promessas a serem feitas. A ruína se avizinhava.

Toda a tragédia, assim, se convergiu para a terça-feira negra, 29 de outubro de 1929, data devastadora para a Bolsa de Nova York e todos os mercados mundiais. Logo no início da manhã, uma enxurrada de papéis foi colocada à venda – e em muitos casos, lotes e lotes não encontraram compradores, pesadelo mais temido pelos banqueiros. As ações da White Sewing Machine Company, que nos meses anteriores chegaram a 48 e fecharam na véspera a 11, foram negociadas a 1 dólar. A United States Steel, socorrida por Richard Whitney na quinta-feira anterior a 205 a ação, fechou em 174. Na média, os piores desempenhos da jornada foram os dos papéis dos consórcios de investimentos, cuja trajetória nos últimos anos era de dar inveja a qualquer indústria. A Goldman Sachs, que terminara a segunda-feira cotada a 60, fechou a 35. Seu fundo de investimento Blue Ridge, que no começo de setembro era negociado por 24, prostrou-se a ínfimos 3 dólares a ação no fechamento da terça negra.

Mais uma vez, os banqueiros acharam por bem não enviar missões de resgate à Bolsa. Pior: correram boatos de que os magnatas estavam na verdade vendendo suas ações – o que foi desmentido de forma oficial por Thomas W. Lamont, da J. P. Morgan. Mesmo assim, o prestígio dos bancos, tão em alta na quinta-feira, havia desmoronado junto com as ações. A população contava novamente com eles para a salvaguarda financeira do mercado, mas a decisão já estava tomada. Naquele dia, os piores pesadelos se reuniram em um pregão: o volume de vendas foi superior ao da quinta-feira-negra, com 16.410.030 ações trocando de dono, sem contar aquelas que não conseguiram ser vendidas mesmo com preços no atoleiro. As médias industriais do Times caíram quase nos mesmos patamares da véspera: 43 pontos, o que, na prática, anulava o lucro dos doze formidáveis meses precedentes.

Depois dessa terça-feira, entre mortos e feridos, ninguém se salvou. Se na primeira semana os cidadãos comuns foram as maiores vítimas da carnificina acionária, na seguinte, pelo tamanho dos lotes colocados à venda, pôde-se perceber que também os muito ricos perderam dinheiro ao se livrarem de seus papéis a preço de banana. Atordoados, especuladores à beira da bancarrota vagavam pela metrópole. O clima era soturno e melancólico, como a ressaca de uma inebriante celebração que acabara subitamente. A polícia de Nova York resgatou o corpo de um agente comercial das águas do rio Hudson. Além da roupa do corpo, seus únicos pertences eram 9,04 dólares e alguns avisos para pagamento do aumento da margem.

Respiro e incertezas

Em uma ironia dos infindáveis mistérios do mercado financeiro, as ações registraram surpreendentes ganhos no dia 30, com as médias industriais do New York Times tomando o elevador e subindo 31 pontos – e sem nenhum apoio organizado para tanto. Talvez o discurso de tranqüilização, repetido em coro por todos os mandas-chuvas, tivesse surtido efeito. O subsecretário de Comércio dos Estados Unidos, Julius Klein, foi ao rádio na noite do dia 29 para lembrar à população que o presidente Herbert Hoover dissera que os negócios elementares do país ainda resistiam. "O ponto principal que eu quero destacar é a solidez fundamental da maior parte das atividades econômicas", defendeu. O homem mais rico do mundo, John D. Rockefeller, quebrou um silêncio que já durava várias décadas e reapareceu em público para dizer que estava comprando ações (leia reportagem nesta edição). No último dia do mês, em pregão de apenas três horas, nova alta permitiu um respiro ao mercado.

O nervosismo, porém, ainda é latente em Wall Street e nas outras Bolsas ao redor do planeta. Já se provou nos últimos dias que a vontade do mercado é incontrolável, e seu furor, devastador. Os escritórios de corretagem já anunciaram que não darão folga aos funcionários no primeiro fim de semana de novembro, quando a Bolsa, mesmo com o mercado suspenso, abrirá seus salões para a conclusão de negociações e correção de erros gerados pela turbulência do crepúsculo de outubro. A gravidade da situação pode ser percebida até mesmo na curiosa e atabalhoada tentativa do jornalista Arthur Brisbane, editor da cadeia de jornais Hearst, de levantar o moral dos americanos. "Para se consolar, se você perdeu, pense na gente que vive perto do monte Pelée, que recebeu ordem para abandonar suas casas", escreveu o colunista, citando o furioso vulcão que já matou 30.000 pessoas no Caribe desde o começo do século. Não seriam poucos os investidores falidos, de ventas ao chão, que prefeririam estar na calorosa vizinhança do vulcão da Martinica – mas ainda com dinheiro para comer um cachorro quente com Coca-Cola.

A história secreta da crise financeira

Historiador econômico Harold James questiona o papel do Fed como banco central global ao mesmo tempo em que pauta suas decisões com base nas perspectivas americanas.

O maior romance de Balzac, Ilusões Perdidas, termina com uma exposição da diferença entre a "história oficial", repleta de mentiras, e a "história secreta" – ou seja, a verdadeira. Antes, era comum ocultar verdades escandalosas da história por um bom tempo – até mesmo para sempre. Já não é mais.

E não há um lugar onde isso seja mais evidente que nos relatos da crise financeira global. A história oficial retratou o Federal Reserve (BC americano), o Banco Central Europeu (BCE) e outros grandes bancos centrais como comandantes de uma ação coordenada para resgatar o sistema financeiro global do desastre. No entanto, a publicação de transcrições das reuniões do Comitê Federal do Mercado Aberto (Fomc), datadas de 2008, revelam que, na verdade, a instituição saiu da crise com o papel de ser o banco central do mundo, enquanto continuava a apoiar principalmente aos interesses norte-americanos.

As reuniões mais significativas ocorreram em 16 de setembro e 28 de outubro daquele ano – no rescaldo do colapso do banco de investimento Lehman Brothers – e direcionaram seu foco para a criação de acordos bilaterais de swap cambial, destinados a assegurar liquidez ao mercado.

O Fed iria estender suas linhas de crédito em dólar para um banco estrangeiro em troca de sua moeda — e o banco estrangeiro concordava em comprar sua moeda de volta após um período determinado, diante da mesma taxa de câmbio, somados os juros. Isso deu aos bancos centrais – especialmente àqueles na Europa, onde havia escassez do dólar — as divisas que precisavam para emprestar às instituições financeiras de seus países.

Com efeito, o BCE estava entre os primeiros bancos a chegar a um acordo com o Fed, seguido de outros grandes bancos centrais de países avançados, incluindo o Swiss National Bank, banco central do Japão e o do Canadá. Na reunião de outubro, quatro economias emergentes "diplomática e economicamente" importantes - México, Brasil, Cingapura e Coreia do Sul – se somaram à ação com o Fed, concordando em estabelecer linhas de swap de 30 bilhões de dólares com cada um de seus bancos centrais.

Embora o Fed agisse como uma espécie de banco central global, as suas decisões foram moldadas, sobretudo, pelos interesses dos EUA. Para começar, o Fed rejeitou pedidos de alguns países – cujos nomes aparecem na transcrição publicada – para juntar-se ao esquema de acordos de swap.

Mais importante ainda, foram fixados limites sobre esses acordos de swap. A essência da função de credor de última instância (no caso, os BCs) tem tradicionalmente sido a provisão de fundos ilimitados. Como não há limite na quantidade de dólares que o Fed pode criar, nenhum participante do mercado pode assumir uma posição especulativa contra ele. Por outro lado, o Fundo Monetário Internacional (FMI) tem recursos finitos, fornecidos pelos países membros.

O papel internacional do Fed desde 2008 reflete um giro fundamental na governança global monetária. O FMI surgiu num momento em que os países foram vitimados permanentemente por apostas casuais dos banqueiros de Nova York, tais como a avaliação do J.P. Morgan na década de 1920 de que os alemães eram "essencialmente um povo de segunda classe." O FMI foi um recurso crítico da ordem internacional pós-Segunda Guerra Mundial, destinado a servir como um mecanismo de seguro universal – que não pudesse ser aproveitado para promover interesses diplomáticos contemporâneos.

Hoje, como os documentos do Fed demonstram claramente, o FMI tornou-se marginalizado – em particular, devido ao seu processo de política ineficaz. De fato, desde o início da crise, o FMI, supondo que a demanda por recursos permaneceria baixa, já tinha começado a reduzir sua capacidade de financiamento.

Em 2010, o FMI planejou ressurgir, apresentando-se como o ponto central na resolução da crise do euro – começando por seu papel no financiamento do resgate grego. No entanto, aqui também, revelou-se uma história secreta - que destaca a enviesada governança monetária global.

O fato é que exclusivamente os Estados Unidos e os países massivamente representados da União Europeia apoiaram o resgate grego. Com efeito, as principais economias emergentes se opuseram veementemente. O representante brasileiro chegou a chama-lo de "um resgate de detentores de dívida privada da Grécia, principalmente instituições financeiras europeias." Até o representante suíço condenou a medida.

Agora que os temores de um repentino colapso da zona euro deram lugar a um debate prolongado sobre como os custos serão recebidos através de resgates internos (os chamados bail-ins) e cancelamentos (write-offs), a postura do FMI se tornará cada vez mais complicada. Ainda que se suponha que o FMI tenha mais hierarquia que outros credores, haverá demandas de cancelamento de uma parte dos empréstimos emitidos. Os países mais pobres do grupo dos emergentes resistiriam a tal movimento, argumentando que seus cidadãos não têm de pagar a fatura por descontrole fiscal em países muito mais ricos.

Até os defensores originais do envolvimento do FMI começaram a se pronunciar contra o Fundo. Representantes da UE estão indignados pelo esforço aparente do FMI em obter apoio nos países devedores da Europa, estimulando cancelamentos de toda a dívida não emitida pelo fundo. E o Congresso dos EUA se recusou a apoiar a expansão dos recursos do FMI.

Enquanto a nomeação ultrajante de outro Europeu como diretor-geral do FMI, em 2011, provavelmente garanta que o próximo líder do Fundo não seja nativo da Europa, o papel cada vez menos transcendente do FMI dá a entender que isso não importa muito. Como mostra a história secreta de 2008, o que importa é quem tem acesso ao Fed.

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